Lembranças de meu tio João (Lúcia)

Começando pelo Giovani, as mensagens sobre João Basilio.
Responder
Gilberto SMelo
Site Admin
Mensagens: 299
Registrado em: Qui 26 Mai 2005 2:23 pm
Localização: BH-MG

Lembranças de meu tio João (Lúcia)

Mensagem por Gilberto SMelo »

LEMBRANÇAS DE MEU TIO JOÃO

Desde que me entendo por gente, nas mais antigas lembranças, meu tio João está presente, quer na minha vida, quer na de minha família. Tanto nos momentos de lutas ou dificuldades, quanto nos de grande alegria, tanto nas vitórias e nas conquistas, lá está ele com sua presença doce e forte, com seu apoio, seu sábio conselho, seu aplauso, seu riso franco, sua ternura, seu entusiasmo. A tal ponto que penso como teria sido a minha vida sem ele.

Aliás, pensando bem, acho que para ele cada sobrinho era e é um pouco seu filho ou filha. Mas, pelas circunstâncias da vida, dou infinitas graças a Deus por ter sido a que mais oportunidade de desfrutar do seu convívio, de beber na pura fonte de sua sabedoria e de sua bondade.

Remexendo no baú da memória, a primeira lembrança que dele encontro é das festas em casa de vovó, lá na Colônia Afonso Pena, depois bairro Coração de Jesus. Ele tocando e cantando e me tomando ao colo para dançarmos. Eu devia ter uns três ou quatro anos. Pode haver lembrança mais linda?

Também me recordo quando sua querida Alice, a mocinha de Divinópolis com quem pretendia se casar, foi visitar a família do futuro marido. Naquele tempo, moça direita não podia sair sozinha com rapaz, mesmo que fosse seu noivo. Para que os dois não fossem sozinhos à casa de Tia Francisca, lá no “Matadouro”, eu, que devia ter uns quatro ou cinco anos, fui designada para acompanhá-los. Segundo tia Alice, eu fui ótima vigilante, pois dormi o tempo todo. Ela deve ter começado a gostar mais de mim por isto.

Do casamento deles pouco me lembro, mas me recordo do batizado e morte do Silvinho e de quando eles conseguiram comprar financiada, uma casa no “Parque Vera Cruz”. Fomos conhecer a casa e ficamos todos felizes, pois para os nossos padrões, era uma “casa de rico”. Casa com água encanada, banheiro dentro de casa, taqueada, ladrilhada, era tudo que alguém da família jamais tivera.

A partir daí, sempre íamos para a festa do aniversário dele (que coincide com a festa de São Pedro, para pernoitarmos). A festa era uma ótima, mas o melhor vinha depois, com todos os primos se acomodando nos colchões espalhados pelo chão, a brincadeira, a risaiada até tarde, momentos inesquecíveis.

Na época nós morávamos na Colônia Afonso Pena, na Rua Perdigão Malheiros, num barracão de três cômodos, alugado. Depois de anos de locação, o proprietário resolveu que queria vender o imóvel. O preço, oitenta reais. Ele era amigo de meu pai e bem que lhe deu todas as chances de comprar. Mas salário de pedreiro, para sustentar uma família que já era composta de casal e quatro filhas, jamais daria para comprar casa própria. Então ele pediu que meu pai desocupasse o imóvel. Meu tio, sabendo do nosso problema, propôs que fôssemos morar em sua casa por um tempo, até conseguir outra solução. Meu pai deve ter relutado, mas acabou aceitando o oferecimento. E nos mudamos para o Parque Vera Cruz, para morar com meu tio e esposa, uns três ou quatro filhos deles, mais vovó e tia Alzira.

Moramos com Tio João e sua família por uns seis meses, até que surgiu a possibilidade de comprar um barraco de um só cômodo, construído à beira do córrego, bem pertinho. Meu tio ajudou meu pai a construir mais um cômodo e nos mudamos.

Mas, de repente, surgiu a chance de comprar, num bairro novo e bem distante, um lote cuja prestação cabia no bolso de meu pai. Ele deve ter ido com tio João ver o terreno e a compra foi contratada. Lembro-me como se fosse hoje a primeira vez que fui lá. Meu pai ia roçar o terreno para fazer os alicerces. Após percorrermos uns cinco quilômetros de estrada de chão, os dois últimos totalmente desabitados, chegamos ao Taquaril. Um povoado com pouco mais de meia dúzia de barracos, separados por grande áreas desabitadas e cobertas de mato. Meu pai localizou nosso lote, escolheu um arbusto, cobriu-o com sua própria camisa fazendo uma cabaninha para que eu me abrigasse. E sob o sol inclemente, sem camisa, começou a roçar o mato que cobria todo o terreno.

No domingo seguinte foi o primeiro dia do mutirão. Tal como acontece até hoje entre os operários da construção civil, todos os companheiros de trabalho se reuniam para ajudar o colega que ia erguer seu barracão. Bem cedinho os homens se dirigiram ao local de trabalho. Também as mulheres, mamãe, vovó, tia Alzira se levantaram cedo e logo começaram a fazer paneladas de comida que foram colocadas num balaio e levadas a tempo para o almoço. Nuns três ou quatro fins de semana conseguiram fazer os alicerces, levantar as paredes, colocar portas e janelas e fazer o telhado de um barracão de dois cômodos. Junto aos trabalhadores estava meu tio, que já entendia mais de construção que todos eles.

Sem rebocar as paredes (o dinheiro não dava para tanto), com o piso em chão de terra batida, que em dias de chuva iria se transformar o piso em poças de lama, deu-se por terminada a obra e nos mudamos para nossa nova casa no Taquaril.
O problema agora é que eu, aos oito anos de idade, era muito criança para percorrer sozinha aquelas estradas, aqueles doze quilômetros de ida e volta para a escola. Meu tio, mais uma vez, ofereceu a solução do problema: eu ficaria morando com eles e iria para casa só no final de semana.
Isto poderia parecer pouco se ele estivesse vivendo em situação normal. Mas isto ocorreu num período em que ele teve um grave problema de saúde, ele e a família estavam vivendo com grandes dificuldades financeiras. A situação ficou tão grave que ele teve que mudar-se de sua boa casa e mudar-se para um barracão com aluguel mais baixo, a fim de que a diferença pudesse auxiliar nas despesas. A família aumentando, ele continuando sem poder trabalhar, usando medicamentos caros, tia Alice se desdobrando para que todos tivessem o mínimo necessário, vovó costurando muito em sua velha máquina de costura. Mas durante aqueles duros anos, nunca ouvi de sua boca uma palavra de desespero ou de revolta, nunca o vi gritar ou bater num filho, nunca vi ou senti nada que me fizesse sentir que eu significava um peso ou uma preocupação a mais para ele e sua família.

Durante mais ou menos um ano, fiquei morando com eles, só voltando para casa nos fins de semana. Somente após passar para o terceiro ano, quando eu já tinha nove anos e meio, fui viver com meus pais e irmãos a semana toda. Saia para a escola às cinco e quinze da manhã em companhia de meu pai que ia tomar o ônibus para o trabalho, íamos juntos até o ponto e depois eu continuava sozinha por mais uns quatro quilômetros até chegar à escola.

Outra coisa na vida de meu tio que me marcou para sempre, foi seu amor a Deus e a Nossa Senhora, não um amor feito de palavras ocas, mas um amor operacionalizado que o levava a se comprometer com os mais pobres, a ajudar a igreja, a se entrosar e ajudar na comunidade, a reformar e construir capelas. Ele foi, para mim, uma dos primeiros exemplos de alguém que ligava vivência da religião e amor ao próximo. O primeiro contato com a Bíblia que tive e que foi o único até a idade adulta, foi com o livro que ele me emprestou e que li e reli repetidas vezes: Bíblia das Escolas Católicas.

Depois que mudamos do Taquaril nossos contatos se espaçaram, mas o amor permaneceu. Tenho certeza que ele e tia Alice, na medida do possível, acompanharam minhas lutas e dificuldades e mais do que isto, vibraram com minhas conquistas.

De minha parte, fui vendo a família deles crescer, assisti a luta da companheira guerreira tia Alice, tentando (e conseguindo) fazer o possível e o impossível para que os filhos estudassem, conseguissem emprego, dessem os primeiros e decisivos passos na conquista de uma vida bem menos sacrificada que a de seus pais.

Quando voltei a estudar, já adulta, depois de quatorze anos fora da escola, eles vibraram e torceram por mim. Quando precisei treinar datilografia para enfrentar um concurso na Caixa Econômica, foram eles que me emprestaram uma velha máquina de escrever. E, sobretudo, foi meu tio que alimentou em mim o amor pela música, pela Seresta. Eu adorava vê-lo tocar e cantar e estava sempre na cola dele e de seu grupo. E quando, depois de ter criado o meu próprio grupo de seresta (que completou dezessete anos ) sob sua inspiração, precisei de alguém para tocar violão, ele me encaminhou seu velho e querido amigo João Veloso, que toca conosco até hoje.

Meu tio é um guerreiro, uma pessoa muito especial, homem de bem, sensível e inteligente. Orgulha-se de sua família, ama as pessoas e sabe fazer com que se sintam amadas. Ama a vida e sabe aproveitá-la. Acompanhado de sua Alice, fez muitas viagens de lazer, especialmente para Caldas Novas. Além de músico (um dos poucos tocadores de banjo que conheci), é cantor e compositor.

Quando comecei a contar histórias, foi dele que obtive as primeiras risadas. Há mais ou menos dois anos, fui visitá-los e convidar o casal para dar uma volta de carro. Tomamos a direção do Taquaril, passamos por nosso velho barracão, fomos seguindo a estrada de chão até que ela terminou, já nos limites de Belo Horizonte. Eu ia contando uma história que acabara de elaborar, a do Compadre Joaquim e eles só dando risada. Ao longe, no final da linha horizonte, após uma série de colinas se podia vislumbrar ao longe a cidade de Sabará. Eles ficaram muito felizes com aquele passeio e eu mais ainda.

OBRIGADA POR TUDO, MEU TIO. DEUS O PROTEJA E RECOMPENSE.
Lucia – 07/ junho/2005.

Responder