A história de Lúcia Miranda - Parte I

Aqui está bem contada a história dos primeiros tempos da familia Basilio, puxada da memória de Alzira, João Basilio, Alice Maria e Lúcia.
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Gilberto SMelo
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A história de Lúcia Miranda - Parte I

Mensagem por Gilberto SMelo »

O COMEÇO DA HISTÓRIA
Esta história começou no final do século dezenove, quando Manoel nasceu, lá no Nordeste, no agreste de Pernambuco, quase divisa com o Ceará. Sua família era proprietária de muita terra, mas vivia com toda simplicidade. Manoel, filho do segundo casamento de sua mãe, era dos irmãos mais novos e cresceu feliz, adorado pelas irmãs (depoimento delas, mais de sessenta anos mais tarde). O único problema era a seca que castigava sempre. Um dia, já rapaz, depois de mais um “verão” rigoroso, ele tomou a decisão que iria mudar sua vida. Iria para São Paulo, tentar conquistar uma vida melhor. Juntamente com alguns amigos, partiu, deixando atras de si lágrimas doloridas. Em São Paulo, mais uma decepção. Manoel só tinha estudado o suficiente para ler e escrever com dificuldade. Não havia trabalho, principalmente para aqueles nordestinos que só sabiam lavrar a terra, cuidar de gado.. Era final da década de 20 e a crise era mundial. Depois de esgotar as parcas economias, resolveram que o melhor era enterrar o sonho e voltar para casa. Já no caminho de volta, o vapor no qual viajavam pelo São Francisco cruzou com outro onde encontrou amigos indo em sentido contrário. Estes lhes disseram que estavam indo para Minas Gerais, onde a construção de uma grande cadeia estava dando emprego para muita gente. Manoel, com as energias renovadas, mandou recado para casa dizendo que tinha decidido ir tentar a sorte em Minas. Desta vez haveria de dar certo. E foi a última carta que escreveu para casa, último de qualquer contato que jamais voltou a fazer até o final de sua vida.

Enquanto isto, em Minas Gerais uma outra família, lutava bravamente pela sobrevivência. Seu Getúlio e Dona Maria trabalhavam na roça, plantando à meia para os fazendeiros da região. Apesar da extrema pobreza, aquela era uma família unida e feliz. Um dia vieram dar pros lados de Ribeirão das Neves, bem perto de onde se construiria, mais tarde a Penitenciária de Neves. E foi assim que a segunda filha, de nome Maria José, mas conhecida por todos como Lica, de pele clara e longos cabelos negros, veio a conhecer o nordestino Manoel. Os nordestinos formavam uma turma alegre, que gostava muito de cantar, e logo encantaram as mocinhas da região. Lica tinha l6 anos quando conheceu Manoel e antes que completasse 17 anos os dois já estavam casados.

Foram tempos extremamente difíceis. O dinheiro era muito pouco e Lica tinha uma saúde delicada, carecia de cuidados médicos inacessíveis para os mais pobres. Os filhos foram chegando e morrendo ainda em tenra idade (ela perdeu os cinco primeiros). Tentando conseguir uma vida melhor, talvez porque o serviço na Penitenciária estivesse acabando, Manoel deixou a esposa e foi para São Paulo, desta vez para o interior para exercer a profissão de lenhador. Lica, que já perdera dois filhos, ficou com o terceiro que ainda não tinha completado o primeiro ano. Depois de um longo período sem notícias chegou aquela que ningúem esperava: Manoel havia morrido.

Segundo sua irmã mais nova, Alzira, Lica chorou como louca, vestiu luto, tornou-se sombria e medrosa de tudo. Talvez tenha sido salva pelo ato de ter um filho para cuidar, o que fazia, certamente, contando com a ajuda de sua família. Depois de vários meses, uma surpresa. Uma carta de Manoel desfez o equívoco. Ele estava vivo e pedia-lhe que, se quisesse vê-lo, viesse para Belo Horizonte, onde ele chegaria no dia tal. Lica ganhou alma nova. Na data marcada veio para a capital, encontrou seu amor e logo depois viajou com ele e o filhinho Noé para São Paulo. Foram dias de muita luta, muito sofrimento. Moravam em cabanas isoladas, no meio da floresta e o único meio de transporte era o troley, que utilizava as linhas do trem. Lica contava que, devido à umidade, escorria a água da garoa pelas paredes do rancho. Ela vivia doente, e o filhinho Noé também adoeceu e morreu. Lá ela teve mais dois filhos, que também não sobreviveram.

Finalmente voltaram para Minas, indo viver em Belo Horizonte. E foi ai que eu entrei nesta estória. Fui “encomendada” em Belo Horizonte, mas quando chegou a hora do nascimento, minha mãe foi para Ribeirão das Neves. Só voltou quando eu já tinha dois meses. Eu era a sexta filha mas fiquei no lugar de mais velha. Contam que o medo de que eu morresse era tanto que uma simples dor de barriga deixava toda a família alarmada.
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AS MAIS ANTIGAS LEMBRANÇAS

Minhas lembranças mais antigas são da “Colônia Afonso Pena”, depois bairro Coração de Jesus. Um barracão de aluguel, com três cômodos, pintado de rosa, na rua Perdigão Malheiros, esquina com Donato da Fonseca. No fundo do terreno, uma cisterna, sombreada por uma gigantesca mangueira que dava deliciosas mangas sapatinha. Deve ser das primeiras frutas que comi, colhidas ou caídas do pé e a paixão perdura até hoje. Adoro mangas. Mamãe lavava roupa “pra fora”, e se reunia com as amigas, trabalhando, conversando e cantando ao pé da cisterna, enquanto eu e as outras crianças brincávamos ao redor. As donas das roupas que mamãe lavava, moravam no bairro de Lourdes, Santo Antônio ou até no Centro. Lembro-me de ir com ela entregar a roupa lavada e, numa época quase sem transporte coletivo, devíamos caminhar mais de uma légua entre ida e volta. Mamãe era muito asseada, muito cuidadosa ao trajar e de muito bom gosto. Lembro-me dela vestindo um conjunto de saia e casaco, estampado em tons suaves, que eu achava lindo. O certo é que eu a considerava muito bonita e elegante.

Nesta época, meu pai já passara de servente a pedreiro, profissão que executou até o fim da vida, diga-se de passagem, com extrema competência. Naquele período, meus pais eram pobres, mas era uma pobreza razoável para os padrões da comunidade em que viviam, creio mesmo que foi a época de melhor situação financeira em comparação com a que se seguiu. Eles eram respeitados e bem conceituados por toda a vizinhança, inclusive pelos “mais abonados”, como os comerciantes locais, por exemplo, o casal Joaquim e Gercina, donos da única padaria das redondezas e que vieram a se tornar compadres de meus pais, dando-se a batizar respectivos filhos( foram.padrinhos de minha irmã Cleusa).

Por quatro anos fui a única filha, o que deve ter-me dado um início de vida bem paparicado. Depois que completei quatro anos, chegou minha irmã Dalva Maria. No ano seguinte, Cleusa Maria, no outro Maria da Conceição ( tudo Maria, por devoção a Nossa Senhora, ou talvez pela necessidade de contar com a ajuda dos céus). E daí por diante, foi um filho por ano, até completar quatorze. Controle de natalidade era uma palavra inexistente. Os filhos eram “mandados por Deus” e aos pais, só cabia cuidar deles.

Cada gravidez era tratada como um grande segredo. A gente via a barriga da mãe crescendo, os palitozinhos, sapatinhos, toucas, cueiros, fraldas e paninhos sendo feitos e lavados, a movimentação do dia do parto ( com parteira e tudo) e dos dias seguintes, a barriga sumindo e tinha que fazer de conta que acreditava que a cegonha tinha trazido um irmãzinho. Este mistério (da estreita relação entre barriga da mãe crescendo , criança chegando e barriga diminuindo) desvendei cedo, embora fosse forçada a continuar fingindo nada saber. Mas o de como os bebês iam parar na barriga da mãe, este perdurou até que eu completasse 12 anos e só vim a aprender na rua.
Lembro-me também de ouvia o barulho que indicava a aproximação do congado, meu pai me punha no colo e íamos correndo para ver. Eu adorava e até hoje não posso ver nada ligado ao tema sem me lembrar daquela emoção.

Esqueci de mencionar os meus padrinhos de batizado: Messias e Julieta. Messias era conterrâneo de papai e namorava Julieta, mocinha de Neves, quando me batizaram. Mas o namoro não deu em casamento talvez por que ele foi para São Paulo e ela acabou se casando com Alonso. Nunca conheci meu padrinho, e sinto pena por isso. Mas Julieta e Alonso estiveram presentes naqueles primeiros anos, de modo especial no Natal, pois me lembro de receber deles algum presentinho, como pacotinhos de doces e alguma moedinha. Depois, perdemos o contato e só reencontrei minha madrinha em seu velório, décadas depois. Ela morrera ao tentar retirar o papagaio de uma criança preso a um fio de alta tensão que passava nos fundos de sua casa em Ribeirão das Neves.

LEITE DE CABRA
Naquela época não havia leite empacotado, nem mesmo o engarrafado que sucedeu a fase das “vaquinhas”. Estas eram um veículo pequeno, com um grande recipiente na traseira, que percorria os bairros e vilas e vendia o leite que cada pessoa buscava em leiteiras ou em panelas ou latas. Mais tarde veio a moda do leite em garrafas. O comprador levava o litro vazio e voltava com um cheio. Mas o meu tempo de menina foi anterior a todos estes. Desde sempre me lembro de que em minha casa havia cabras, pelo menos duas ou três, além de suas crias. Eu e minhas irmãs fomos criadas com o leite delas e embora eu achasse o gosto dele um pouco enjoativo , não tinha alternativa. Tinha que bebê-lo. As cabras eram levadas para o pasto pela manhã, após a ordenha e recolhidas a presas à tardinha. Ficavam no cercado ou amarrada e, para evitar que o cabritinho mamasse durante a noite, mamãe costurava um “bornalzinho”, de algodão que era amarrado em suas bocas, presos com alças no pescoço.


A LOURA E A MORENA
Dalva, morena e miudinha, teve saúde fragil desde o nascimento. Era muito mexedeira e por duas vezes depejou, primeiro leite, depois água fervendo sobre si mesma provocando uma feia queimadura em cada braço. Além disto teve um sério problema no ouvido, que vivia infeccionado.. Quando teve coqueluche, ensinaram a mamãe que era bom tomar o sereno da madrugada. Como não havia eletricidade na rua, papai acendia um lampião de carbureto (ô cheiro desgraçado) e saia às quatro da manhã andando pelas ruas da vila. E pergunta quem ia com ele? Eu mesma com meus quatro ou cinco anos de idade, não obrigada, mas por amor à aventura e me sentindo muito útil, pois alguém teria que segurar o lampião..

Já Cleusa, era totalmente diferente, pelo menos no físico. Nasceu com a pela muito alva, com lindos cachos que de tão louros pareciam brancos. Certamente por despeito e inveja de criatura tão mimosa, foi alvo, desde cedo das nossas críticas e de apelidos irônicos como, por exemplo, macarrão da Santa Casa, torresmo, etc. Também o fato de ter como padrinhos o casal Joaquim e Gercina, melhor de vida que os demais padrinhos, dava-lhe um status que nos incomodava. Lembro-me como se fosse hoje, do dia do batizado. Depois da cerimônia na Igreja de Santo Antônio, as famílias se reuniram na casa de vovó, um barracão que ficava no alto da Rua Conde Linhares. Naquelas reuniões nunca podia faltar o arroz-doce, que era servido junto com doce de leite ou de mamão ralado. Enquanto os adultos conversavam, as crianças corriam lá fora, inventando tudo quanto era brincadeira.

Nos anos seguintes, volta e meia eles, os padrinhos mandavam-lhe um lindo vestido de tafetá e a nossa inveja da pele alva, dos cachos dourados e dos vestidos nos fazia infernizar a vida da pobrezinha.


MÊS DE MARIA – AS COROAÇÕES
Recordação das mais lindas e prazerosas que guardo de minha infância foram as coroações de Nossa Senhora no mês de maio. Eram dias e noites de pura magia, de extrema felicidade.
Minha tia Alzira, que era jovem e linda e me amava demais (como eu a ela até hoje), era catequista e logo cedo começou a me preparar para participar da coroação. Ensinava-me a cantar lindas melodias, inclusive as Ave Marias, que eram uma forma particular de participação daquelas que tinham a voz mais bonita. Duvido que ela fosse isenta para julgar a beleza de minha voz, o que sei é que ela sempre me preparava para cantar, ensaiava comigo vários dias e eu acabava dando conta do recado e recebendo elogios, coisa rara naquela minha vidinha pacata. Mais de um mês antes mamãe comprava o tecido, cetim rosa ou azul e levava para nossa vizinha costurar. A costureira era dona Maria do Zé Babão (sei lá o porque do apelido do marido), que morava do outro lado da rua, umas quatro casas abaixo da nossa. Enquanto ela costurava, eu brincava no quintal com os filhos dela, debaixo de um frondoso pé de sabugueiro, do qual eram colhidos grandes ramos para perfumar o altar no dia da coroação. Finalmente, depois de mais de um mês de ensaio, chegava a grande noite. Além do vestido de cetim, havia uma coroa de flores artificias na cabeça e, para quem podia comprar, asas feitas de penas brancas (eu era daquelas cujos pais não podiam comprar asas). O vestido era lindo, mas o frio obrigava a colocar sobre ele um agasalho, em geral feiinho e velho, com o qual íamos até chegar ao local. Aí tínhamos que agüentar o frio. Mas a gente não se importava, ninguém reclamava. O altar, armado ao ar livre, em frente à capela, ficava lá no alto, ladeado por duas escadas colocadas perpendicularmente. Era objeto de preparo a tarde toda, por catequistas e familiares. Além da beleza, recendia com o perfume das inúmeras flores que o ornavam, na maioria rosas, colhidas nos jardins da vila. Ninguém perdia aquelas festas, coisa raríssima era alguém que professasse fé diferente da católica. Além disso eram festas tão sociais quanto religiosas, oportunidades para as pessoas se encontrarem e conviverem, colocar os assuntos em dia. Todos reunidos frente ao altar, depois do canto da Ave Maria, começava a coroação propriamente dita, colocando na estátua de Maria a palma, o rosário, véu e, finalmente, a coroa. Era coisa muito linda de se ver, a escadaria cheia de anjos cantando, jogando pétalas de rosa, exercendo com entusiasmo e pureza o doce dom de ser criança. Depois de todo aquele espetáculo vinha a recompensa. Para todos os anjos, canudos ou cestinhas cheias de amêndoas, doces, balas e quitutes semelhantes, oferecidos pela família da menina que tivesse posto a coroa. Os pais voltavam a agasalhar seus anjos e retornavam para suas casas, aos grupos, conversando, dando risada. No dia seguinte todo o ritual se repetia, e assim, entre vestidos de anjo, cantos de louvor a Maria, perfume de sabugueiro e cartuchos, transcorria o mês de maio naquele tempo da minha meninice.

Mal terminava o mês de maio, já chegavam as festas juninas. Primeiro Santo Antônio, depois São João e no final do mês São Pedro e São Paulo. Rezas do terço, fogueiras, fogos de artifício, levantamento do mastro com a gravura do santo, pau de sebo, doces diversos, canjica, era coisa boa demais.

A PRIMEIRA ESCOLA
Entrei para a escola com 6,5 anos, pois nasci no mês de julho. Naquele tempo, a Escola Dom José Gaspar funcionava em dois locais distintos, separados um do outro por uns 100 metros. Eram duas casas de moradia adaptadas para ser escola, localizadas num terreno entre as ruas Conde Linhares e Donato da Fonseca. Com o aumento da demanda, outra casa passou a ser utilizada, esta na esquina da Rua Conde Linhares com o espaço que veio a se tornar a Praça José Cavalini, mas que naquele tempo não passava de um brejo, cortado por um córrego, que tempos depois foi canalizado e que ia desaguar onde hoje está a movimentada avenida Prudente de Morais. O material escolar era mínimo, um caderno Avante (que tinha na capa soldados em posição de “avante”), um lápis preto e uma borracha. Meu olfato, sentido dos mais apurados que possuo, às vezes percebe um odor que me remete àqueles dias onde o cheiro do lápis apontado e da borracha se misturava ao da merenda. E por falar em merenda, creio que eu devia levar alguma bem pobrinha pois me lembro de que tinha a maior inveja das colegas que sempre levavam sempre pão com goiabada (acho que eu levava era pão com açúcar ).

Deste tempo ficou na lembrança o meu primeiro namorado, o Marcos, garoto franzino, lourinho, que sentava atrás de mim e me dizia frases como: ‘dá esta borracha para mim’ ?. Eu respondia que não e ele retrucava, sem a menor lógica: você é bonita! Isto era tudo, mas para os colegas que nos ouviam e para mim a gente estava namorando. Talvez o que mais me agradasse era o fato dele dizer que eu era bonita, pois muito poucas vezes ao longo de minha vida, alguém me disse isto.

Falando sobre escola, não posso me esquecer de minha primeira professora, Dona Ana Machado, uma das minhas primeiras professoras. Solteirona, alta e forte, temida pela maioria dos alunos, ela fazia do ofício de ensinar a razão de sua vida. Embora fosse considerada brava e durona, para mim ela era pura ternura e teve papel preponderante na escolha dos caminhos de minha vida. Durante os anos seguintes, ao ver que eu parara de estudar, sempre que me encontrava ela repetia-me a mesma frase: ‘você precisa estudar Lucinha, você é muito inteligente’. Eu não acreditava muito no que ela dizia, minha auto estima era a mais baixa possível, mas creio que suas palavras devem ter sido o diferencial que eu precisava para fazer com que minha caminhada tenha sido diferente da de outras meninas da minha idade e do meu meio social.

Muitos anos mais tarde, quando fui lhe comunicar que, vencendo todas as dificuldades, fazendo Madureza, eu passara no Vestibular da Federal e iria fazer o curso de Direito ela ficou super feliz e fez questão de me presentear-me com um dos livros exigidos pela Faculdade. Na dedicatória escreveu:“O mundo abre alas para quem sabe caminhar. ”


ASSSOMBRAÇÃO
À noite os vizinhos iam fazer visitas, muitas vezes iam à minha casa. Todos se assentavam na cozinha para conversar iluminados pela luz da lamparina. Mamãe fazia bules de café uma grande bacia de biscoito frito. E era a hora das histórias. Cada um contava um caso e os de assombração eram os mais comuns e também os mais variados. Eu ficava dividida entre a curiosidade em ouvir o final da história e o medo de ir dormir, mas tinha uma hora em que o sono falava mais alto. Numa destas noites, depois de ouvir bastante caso de assombração, o sono venceu e fui pra cama nos braços de papai. Dei uma cochilada e acordei berrando. Pois não é que encostado na parede do quarto, iluminado pelo clarão do luar, havia um fantasma, imóvel, sem cabeça, sem pernas e de braços abertos? Todos correram para o quarto e à luz da lamparina, foi esclarecido o fato. Era o meu vestido de coroação, que a costureira tinha entregue e mamãe colocara com as mangas feito braços abertos, num cabide de cabo de vassoura atravessado e preso num prego na parede.

HOMEM MAIS MOÇO, JAMAIS
Desde criança ensinaram-me que a mulher nunca deveria casar-se com homem mais novo. Esta lição era sempre exemplificada com a estória real de uma comadre de mamãe que se casou com o João, dez anos mais moço. Com o tempo, a pobreza e a dureza da vida, esta diferença pareceu triplicar, tornando-a objeto de comiseração e, pasmem-se, muda ou manifesta recriminação de todos. Comentava-se a vida boêmia do marido, suas aventuras, suas amantes, as surras que dava na esposa, e tudo isto era considerado normal de certa forma, quase uma conseqüência natural de seu tresloucado gesto de ter-se casado com homem tão jovem. Minha mãe era dez anos mais moça que meu pai e considerava esta diferença de bom tamanho. Não assimilei a lição. Pelo contrário, acabei casando-me com um homem mais moço. Quase três anos de diferença. Mas o fim do casamento, após 19 anos de vida em comum e 3 filhos, não teve nada a ver com a questão da idade. Os tempos já eram outros.


O SALVAMENTO
Lembro-me de um campo juncado de flores amarelas. Ficava em um terreno baldio, a uma quadra de minha casa. Toda tarde, passava por ali uma tropa de cavalos que iam não sei de onde, nem para onde. Mas o certo é que passavam. Uma destas tardes, Teresa, a moça que ajudava mamãe (que devia estar de resguardo pelo nascimento de minha irmã Cleusa ) estava tomando conta da Dalva, que deveria ter um ano e estava sentadinha no carrinho de tábuas de caixote que papai fizera para ela, bem no meio da estrada, no caminho por onde passava a tropa. De repente, enquanto Tereza distraída e bem distante conversava com uma amiga, lá veio a tropa desinbestada. Mamãe, que estava no portão de casa, pressentiu a tragédia e saiu gritando desesperada. Foi o tempo exato de salvar a filha que, por pouco não era esmagada sob os cascos dos cavalos. Rendeu história para contar muito tempo.

EU JÁ DEVIA TER APRENDIDO
Do lado de cima do nosso barracão havia um outro, idêntico, que era ocupado por Dona Etelvina e sua família. Dela se dizia que “não regulava bem da bola”. Tinha três filhos: Irene, Almerinda e um rapaz a quem chamávamos “Tiziu”, talvez por ser negro como carvão. Me lembro dele conversando, brincando comigo, é das minhas mais antigas lembranças.

Minha tia Maria que trabalhava no Hospital São Lucas mandava para mim umas revistas velhas e ele me pedia uma para ler. Quando eu lha entregava, ele a cortava com tesoura. Aí eu ficava brava, chorava, dizia que não lhe daria outra. Ele jurava que desta vez não a cortaria. Eu lhe dava outra e a cena se repetia até acabarem as revistas. Para ser tão ingênua, eu deveria ser bem nova. Ou talvez nem tanto, pois até hoje me acontece agir desta forma, acreditando em quem não merece e mantendo a fé nas pessoas, mesmo depois de ser enganada várias vezes.


DOEU DEMAIS
Como é que uma criança toma consciência do que seja injustiça, do que significa sofrer injustiça? Para mim foi aos onze anos de idade, quando senti esta dor pela primeira vez.

Certamente eu já protagonizara momentos onde a injustiça estivera presente. Freqüentemente acontecia de sofrer um castigo imerecido, uma punição maior que a falta. Filha mais velha numa família pobre, a injustiça estava presente na obrigação de, desde muito cedo, trabalhar muito para ajudar mamãe nas tarefas do lar, a cuidar dos irmãos, sem nunca ter tempo de brincar. Dentre as mais remotas lembranças está a de uma surra memorável que ganhei de mamãe e que, depois de mais velha, considerei uma grande injustiça. Ela estava de resguardo de minha irmã Dora, logo, eu tinha 8 anos de idade. Morávamos num barracão à beira de um córrego que cortava a rua Leopoldo Gomes, no Bairro Vera Cruz. Para buscar água e lavar roupa, atravessávamos sobre as pedras (era um córrego raso, exceto quando chuvas fortes produziam enchentes caudalosas) até uma bica localizada na outra margem. Pouco acima de nossa casa, tal córrego era canalizado, passando dentro de uma grande manilha. Mamãe entregou-me uma bacia com roupinhas de nenen para que eu lavasse na bica. Quando terminava meu trabalho começou a chover forte. Mais que depressa, procurei abrigo na manilha onde o córrego passava, sem pensar que, se houvesse uma enchente, o que não era raro acontecer, era uma vez uma lavadeira mirim. Em casa, minha mãe se desesperava, sem saber o que tinha acontecido comigo, sem poder sair para me procurar, pois sair na chuva estando de “resguardo” era considerado procurar a morte, era perigoso demais, além do que ela tinha um bebê e mais três crianças para cuidar. Quando a chuva parou e cheguei muito lampeira, contando vantagem por ter escondido da chuva dentro do bueiro, ao invés de agrados e elogios ganhei uma surra de correia.

Em casa, se não estava fazendo dever da escola, tinha que buscar água na fonte, lavar vasilha, varrer a casa, cuidar dos irmãos. Nem tinha direito de ler um livro de contos de fadas emprestado pela biblioteca da escola, diga-se de passagem, um dos espaços mais maravilhosos que já encontrei em toda a minha vida, onde descobri o supremo prazer da leitura. Quando mamãe se aproximava, eu escondia o livro fino dentro do caderno e fingia que estava ainda fazendo o dever. Pobre mamãe! Ou seria pobre de mim, que no meio de tanta pobreza sonhava acordada que um dia meu padrinho (também nordestino que sumiu para São Paulo) voltaria e me traria de presente, não belos vestidos e sapatos, nem guloseimas com que pode sonhar uma criança pobre, mas duas caixas bem grandes, cheinhas de livros.

Eu bem que via que as colegas de escola, tinham vestidos bonitos, material escolar de boa qualidade e merendas gostosas. Mas, nada disto me afetava muito. Era encarado com naturalidade e não me fazia sofrer.
Minha escola, Grupo Escolar José de Anchieta, era grande, imponente e importante demais na minha vida. Nunca reclamei do fato de que distasse 6 km de minha casa, aliás do meu barracão de dois cômodos, onde morava na vila Taquaril, próxima ao Bairro Saudade. Evidentemente, naquela época, eu só sabia que era longe. Muitos anos depois, voltei lá de carro, e marquei a distância. Havia uma escola mais próxima, a uns três quilômetros. Mas era uma escolinha pequena e meus pais achavam que eu devia estudar na melhor escola. Melhor, é lógico, dentro das posses deles, compatível com a pobreza da família, mas assim mesmo a melhor.

Meus pais só tinham freqüentado escola o suficiente para aprender mal a ler e escrever, ou seja, menos de dois anos em escola da roça. Diziam ter o segundo ano de grupo. Mas tinham a sabedoria que não se consegue em banco de escola e davam grande importância aos estudos. Minhas mais remotas lembranças são de meu pai comprando e lendo para mim os únicos livros que havia em minha casa e o único tipo de literatura que ele conhecia desde seus tempos de criança nordestina: a literatura de cordel, que, também, era a única acessível ao bolso dos pobres. Minha mais tenra infância foi povoada pela estória de Creusa e o Pavão Misterioso, da Luta de Zé Pretinho e do Cego Aderaldo, dentre outras.

Mas voltando à escola, eu ia com todo gosto, apesar do sacrifício. Vestido branco de fustão, cheio de pregas, laço grande de organdi engomado na cabeça, ambos lavados diariamente e passados por mamãe com ferro de brasa, eu palmilhava seis km para ir e mais seis para voltar, diariamente, quer chovesse ou fizesse um sol escaldante. Se a “precata” arrebentava as tiras, o que não era raro, pois era sempre a mais barata que fosse encontrada à venda na feira, eu seguia descalça (à noite, em casa, meu pai costurava, repregava, enquanto desse). Faltar à aula, só por motivo muitíssimo grave.

Quando, no início do ano, chegava a lista de material era um sofrimento, até conseguir comprar tudo. E olhe que naqueles idos de 50, era pouco material se comparado às listas quilométricas de hoje. Eu era a última a completar o material e tudo era o mais barato que fosse encontrado. Não é de se admirar que os cadernos logo estivessem feios, com as orelhas dobradas e aparência ruim. Eu os carregava numa velha pasta de couro, que papai costurava quando rasgava e engraxava todo ano.

Mas na escola eu fazia bonito. Apesar de todas as dificuldades, apesar de nunca ter vestido bonito para me apresentar e dançar nas festas, eu tinha uma vantagem sobre os demais colegas. Era uma incrível facilidade ímpar para decorar. Assim, quando numa festividade, uma professora precisava de alguém que declamasse um poema de 20, 30 estrofes, que só lhe chegara às mãos um ou dois dias antes da data marcada, era a mim que procuravam. Como a famosa “Veludo”, de Vicente de Guimarães. Não sei como, mas o certo é que desenvolvi um jeito próprio de decorar. Recebia a incumbência e dava conta. Também era a primeira da sala na matemática, principalmente nos cálculos orais. A professora ia ditando os dados e a gente escrevendo o resultado no caderno. Ao final, ela ditava ou escrevia no quadro negro os resultados. Eu rarissimamente errava. Assim era quase sempre também nas demais matérias. Parece que eu me esforçava para ter um bom desempenho, como forma de não me sentir tão inferiorizada diante dos colegas. Muitos eram pobres, mas eu, além de me sentir a mais pobre de todos, era a única que morava tão longe.

O tempo passou e chegou o dia de receber o diploma do quarto ano. Naquele tempo, em que muitos só estudavam até o primário, tal diploma tinha valor. Era o fim de uma fase importante. Meus colegas e eu comentávamos o que estudaríamos depois. As meninas queriam ser professoras e eu também, inconsciente da realidade em que vivia e que me empurraria logo para o mercado de trabalho, adiando para muitos anos depois o sonho de continuar os estudos.

Em cada sala, um aluno receberia o prêmio de Melhor Aluno, que seria entregue pela professora. Não sei que prêmio era, só me lembro de uma caixinha embrulhada para presente, mas era consenso, todos os colegas comentavam que ele devia ser meu. Sem falsa modéstia, eu também achava justo. No momento oportuno a mestra anunciou: o prêmio de melhor aluno vai para a ..............Odete!. Nos entreolhamos assombrados e o zum zum foi geral. Odete era uma menina que entrara na escola no meio do ano. Era mais alta que todos nós, devia ter uns quatorze anos (eu tinha onze). Mas era uma aluna comum, nunca se destacara em nenhuma matéria, nada havia que justificasse tal premiação. Não houve como conter as lágrimas. A decepção, o desapontamento foram grandes demais e em nada me ajudou a solidariedade de meus colegas que também não entendiam a premiação e me olhavam cheios de pena. Tão ruim ou pior que se sentir injustiçado é a humilhação de perceber a pena no olhar e nos comentários dos outros. Creio que nem Dona Apolinária, nossa professora, esperava que sua escolha causasse tal reação. A prova disto é que se sentiu obrigada a descer do pedestal e vir me dar explicações, a mim, uma aluna pobre, magricela, que morava no Taquaril. Sabe o que ela disse? - Olha Lúcia, realmente você é a melhor aluna da classe. Mas a Odete é mais organizada, seu material está sempre bonito, encapado e bem cuidado, seu uniforme está sempre bem engomado. Por este motivo resolvi dar o prêmio a ela.
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POBRE SÓ PODIA SONHAR
Quando estava terminando o curso primário (4ª série ou 4ºano de grupo, como se dizia) eu acreditava e dizia a quem me perguntasse que eu continuaria a estudar. Queria ser professora, aliás como a maioria de minhas colegas. Ingenuamente, não enxergava os obstáculos que já estavam colocados à realização de meus desejos.

Terminei o primário aos 11 anos. Minha irmã Dalva estava com 7 anos e os outros irmãos com 6, 5, 4, 2 e 1 ano de idade. Embora eu estivesse acostumada a andar 12 Km por dia para ir e voltar da escola, isto era sacrifício demais para minha irmãs tão novinhas. Acrescido do fato, de que não haveria quem as pudesse levar e trazer. Isto levou meu pai a vender a propriedade que tínhamos no Taquaril, 2 lotes e um barracão de 2 cômodos de terra batida e mudar para um local com escola mais próxima. Um negociante de imóveis aceitou trocar nossa casa por uma casinha no bairro Saudade, perto do cemitério. A diferença seria paga por meu pai em 10 parcelas. Pela primeira vez, fomos morar em um barracão com piso de tijolos, num bairro bem melhor. Mas nossa alegria durou pouco, pois meu pai logo percebeu que não conseguia pagar as tais parcelas. Pudera, salário de pedreiro para sustentar 9 pessoas. O jeito foi devolver o imóvel e receber o que o corretor quis pagar por ele. Passou-se então a procurar um novo imóvel para adquirir e a única alternativa era um barracão, um “terreno da prefeitura” onde se adquiria só a posse. Acabamos indo morar na Cerâmica Santa Maria, atual Barragem Santa Lúcia, perto de onde meus pais tinham uns amigos. Embora a situação jurídica dos proprietários da cerâmica fosse idêntica a das favelas de hoje, havia bastante diferença na estrutura urbana. Na verdade, tratava-se de uma vila operária com barracões de adobe ou tijolos, com dois ou mais cômodos, um pequeno quintal sem o atual adensamento, onde as relações de vizinhança eram cordiais e ninguém via falar em violência. Logo ao chegar começamos a perceber a dificuldade em conseguir fazer com que eu estudasse. O colégio gratuito mais próximo era o Estadual Central que distava bastante de nossa casa. Mas, além do problema da locomoção, havia o de adquirir uniforme, material escolar, etc. Além disto, os parcos recursos tinham que ser investidos em minha irmã que deveria ir para o primeiro ano primário. Quanto a mim, já tendo “tirado o diploma”, deveria é cuidar da casa para que minha mãe pudesse lavar roupa pra fora e assim ajudar meu pai a sustentar a família. Protestei, chorei escondido, mas sabia que não me restava outra alternativa. Mas guardava em meu coração as palavras de Dona Ana Machado, minha primeira professora, que, sempre que me encontrava dizia: ‘você tem que estudar Lucinha, você é muito inteligente’. Foi portanto, com grande felicidade, que fiquei sabendo terem criado no Grupo Escolar Dom José Gaspar, um curso noturno de admissão ao curso de ginásio que seria instalado no ano posterior para funcionar à noite. Naquela época, entre o primário e o ginásio era feito o curso de admissão. Fiquei super feliz, falei com meus pais e fui logo me inscrever. Durante o dia eu lavava, cozinhava, carregava lata d’água na cabeça, olhava meus irmãos para minha mãe lavar roupa para fora. Assim que ela chegava, eu saia para a aula, aproveitando o resto de claridade do dia. Como chegava cedo para o início das aulas, meus pais pediram a uma família amiga, que morava ao lado do grupo escolar, que me permitissem ficar na casa deles até que os professores chegassem. Foi lá que vi, pela primeira vez, um liquidificador e onde tomei a primeira vitamina de frutas de minha vida.
Os alunos eram todos adultos ou adolescentes, há muito fora da escola. Eu era a mais jovem de todos e também a mais esforçada e entusiasmada. Ao final da aula, lá estava meu pai, me esperando toda noite, às vezes debaixo de chuva. Coitado, chegava cansado do trabalho, jantava e ainda tinha que ir me buscar caminhando mais de 2 quilômetros. Mas ele nunca reclamou. Durou o ano todo esta rotina. Chegaram as férias, chegou o ano seguinte, o dia marcado para o início das aulas. Lá estávamos nós, os alunos, mas professor que é bom nada. Voltamos no dia seguinte e mais no outro e no outro. Assim foi uma semana inteira até que recebemos a notícia que ninguém queria ouvir: não ia haver ginásio, não tinham conseguido implantar o curso noturno. Foi uma decepção sem tamanho, sofri demais. Meus pais devem ter sentido também, mas não podiam fazer nada. Meu pai começou a me dizer que era melhor eu fazer curso de corte e costura, que era uma profissão rendosa e que se poderia ganhar dinheiro muito mais depressa que se fosse ser professora. Citava o exemplo de pessoas bem de vida com o ofício de costureira, tentando me animar. Não me restava alternativa. Fiz curso de corte e costura, tirei diploma, mais tarde fiz outros cursos afins, tentei mesmo aprender, mas nunca me tornei uma costureira. Parece que ocorreu um bloqueio e a costura virou a vilã da história. Anos mais tarde, trabalhando no balcão da Drogaria São Félix, quando por lá passava alguma das colegas de escola e me perguntava se eu estava estudando, nunca consegui evitar que meus olhos se enchessem de lágrimas.


CAFÉ COM PÃO, MANTEIGA SIM
Sou louquinha por pão de sal. Não troco por nada, nem pelo melhor quitute. Novinho, com um pouco de manteiga (margarina não), um café coado na hora em coador de pano. Ah! Que delícia. Se não me detiver a prudência, como dois pães ou mais de cada vez. Entretanto, esta chata virtude me alerta que não tenho mais idade para extravagâncias: - Olha a balança!_ repreende-me sisuda. Engordar, reconheço, mais que ameaça à estética, significa aumento do colesterol e da glicose.
Mas este prazer em comer pão é antigo. Eu o atribuo ao fato de que durante os primeiros anos de minha vida, o pão diário era um luxo inacessível em minha casa. Além da falta de dinheiro havia o problema da distância entre onde morávamos e onde se fazia ou se vendia pão. Para se ter uma idéia, quando moramos no Taquaril, a padaria mais próxima devia ficar a uns quatro quilômetros de distância. Aos sábados papai levava, juntamente com as compras da semana um pão de um quilo (já não se faz mais). Comíamos metade no Sábado á noite e o restante no Domingo pela manhã, uma fatia só para cada um, nunca dava para matar a vontade. Para manteiga não havia dinheiro, nem, geladeira que a conservasse.

Margarina não tinha sido inventada. Sem pão e sem dinheiro para comprar ou fazer bolos e biscoitos, alimentar aquela filharada devia ser um desafio para a criatividade de minha mãe. Pela manhã comia-se batata doce cozida, mexido feito com a sobra do jantar, broa de fubá assado na caçarola coberta por uma tampa de lata com brasas, ou um bolinho que era uma mistura de trigo, água, açúcar e ovo (quando havia), misturado em consistência grossa, que era assado às colheralhadas em frigideira untada ou sobre a chapa do fogão. A gente comia e achava bem gostoso. À tarde leite de cabra com farinha de mandioca, angu doce, farinha de mandioca com açúcar, ou uma mistura de farinha de mandioca, açúcar e água, à qual dávamos o nome de jacuba.

Mais tarde, quando moramos no bairro Vera Cruz, na Cerâmica, ou mesmo no Conjunto Santa Maria, o que havia por perto eram vendinhas que revendiam o pão, logo ele nunca era novinho.
Foi só no meu primeiro emprego, aos treze anos de idade é que fui matar a minha “cegueira” (como dizia mamãe), por pão. Fui trabalhar num pensionato chamado Casa das Estudantes, no bairro Cruzeiro. O pensionato, dirigido por uma congregação de irmãs holandesas destinava-se a hospedar jovens que vinham estudar na capital, filhas de fazendeiros, políticos ou ricaços do interior.

Eu me levantava às 5:45 da manhã e às 6:00 já estava na cozinha.
Punha o leite para ferver, a água para fazer o café e ia pegar o pão que o padeiro deixava no portão. Quando às 6:30 chegavam as que tomavam o café mais cedo, tudo estava preparado para servi-las. Mesa posta, leite fervido, café coado, pão fatiado, manteiga. Mas a esta altura eu já tinha cuidado de mim. Já estava com o estômago cheio de tanto pão com manteiga que tivesse conseguido ingerir.

O trabalho era pesado demais para minha pouca idade, o salário uma miséria (menos de 1/5 do salário mínimo da época), mas eu dava um rombo na despensa, pois, pela primeira vez na vida, pude comer coisas gostosas à vontade, muitas das quais eu nem ouvira falar. Regalei-me com todas aquelas sobremesas, doces, bolos, biscoitos, a própria comida do dia a dia era maravilhosa para mim. Mas o maior encanto era o pão com manteiga. A prova disto é que, ao entrar para lá, aos 13 anos, eu era um palito, devia pesar menos de 40 quilos. Ao sair, dois anos depois, contra minha vontade e quase que literalmente arrastada por minha mãe, pesava 58 quilos. Nunca mais consegui me livrar da briga com a balança. Nem da paixão por pão com manteiga.

COM QUE ROUPA?
Abri a porta do guarda roupa e me quedei pensativa. Puxa vida, é roupa demais. Nada de luxo, nada de etiqueta, a maioria feita pelas mãos hábeis e carinhosas de Dalva minha irmã. Mas se eu ficar uns 3 anos sem comprar roupa, certamente não me faltará o que vestir. Nem o que calçar. E o pior é que muitas peças eu quase nunca uso, mas não tenho coragem de dar para os outros, ficam lá ocupando espaço e incomodando-me a consciência.

Recuei no tempo e voltei à minha infância, aos dias de minha meninice, quando o salário de meu pai era o único com que contávamos para atender às necessidades de uma família com 9 pessoas. Evidentemente, a alimentação consumia a quase totalidade dos recursos.

A gente só tinha um par de sandálias, que chamávamos de “percata”, corruptela de alpargatas, e que eram usadas para ir à escola, à missa, ou para fazer uma visita. O dia-a-dia era de pé no chão mesmo. Elas eram compradas nas barracas da feira livre que funcionava aos domingos nos bairros, ou nas do Mercado Central. Eram calçados simples, solado de pneus, os mais baratos que havia, de péssima qualidade e pouca duração. Mas era o que dava para comprar. Quando arrebentavam, papai entrava em ação. Para isto tinha um “pé de ferro” destes usados por sapateiros, martelo, pedaços de couro e muita taxinha, uma agulha grossa. Pregava, costurava, daí a pouco arrebentava de novo, tornava a pregar, até ver que não tinha mais jeito. Pior era quando o solado já estava fino e, à medida que andávamos, a ponta do prego ficava espetando nosso pé. Perdia a conta das vezes em que voltei da escola com o calçado na mão, os pés na poeira ou no barro da estrada.

Quanto à roupa, a gente sempre tinha um vestidinho melhor, um só, para sair, de sedinha barata, de tecido xadrez, ou estampadinho. Só quando ficava muito “fovero”, ou seja, descorado, começando a puir, é que se pensava em comprar um novo. Uma peça de tecido, para ficar mais barato aproveitando melhor as sobras, e as meninas saiam todas de vestido igual. Vovó é que costurava para nós as roupas de sair. Embora nunca tenha feito curso para aprender a costurar, ela costurava para a vizinhança, uma forma de ajudar nas despesas da família de meu tio com quem residia. Fita métrica ou régua ela nem sabia o que era, pegava uma roupa que estivesse certa no corpo da pessoa, punha por cima do pano e cortava. Nem precisava provar, dava certinho. Em certa época, quando morávamos no Taquaril ela costumava comprar uns quilos de retalhos que eram vendidos em tiras de cores diversas e com os quais fazia vestidinhos para nos dar de presente no Natal. Era o único presente de Natal que ganhávamos.

Para usar no dia-a-dia, para ficar em casa, os vestidos eram de saco. Papai comprava no armazém sacos de farinha de trigo e tintol. Mamãe tingia os sacos, sempre de azul e cortava os vestidos para nós e para ela e os costurava em sua maquininha de costura manual. Com bom humor, chamávamos de “vestido azuré”, numa alusão à cor azul. Mamãe só não tingia os sacos que eram destinados a fazer camisa para meu pai e aventais para ela. A estes ela alvejava até ficar bem clarinhos e os mantinha assim, imaculadamente branco. Isto numa época em que não tínhamos água corrente em casa, nem tanque, nem mesmo uma escova para esfregar a roupa. E ela tinha alergia ao sabão. Não admira que o entorno de suas unhas estivessem sempre avermelhados ou feridos.

Quando a professora dizia que tal dia a gente podia ir sem uniforme, com um vestido bem bonito, me dava uma tristeza! Eu logo pensava: - lá vem vestido de xadrex de novo. Talvez ela tenha captado minha desolação quando, uns dias antes da festa a primavera, apresentou esta alternativa: - quem não tiver um vestido bonito, pode pedir á mãe para fazer um de papel crepon. E já experiente, certamente prevendo algum possível contratempo: - quem tiver mais de um vestido bonito, pode trazer para escolher aqui. Vibrei com a idéia, falei com mamãe e ela coitada, lendo no meu coração, pediu a meu pai o dinheiro. Na véspera da festa, cheguei da escola e sai de novo para comprar, a uns quatro quilômetros de distância, uns três ou quatro rolos de papel crepon azul. Mamãe, amorosamente, cortou e costurou, na sua velha maquina de costura de mão, um vestido de vários babados. Daquela vez eu estava livre da humilhação de ir sempre com o mesmo vestido velho.
Mas a alegria de pobre durou pouco. Quando fui vestir o vestido ele se rasgou em várias partes. Fui procurar a professora, na certa com os olhos cheios dágua. Mas ela logo perguntou quem tinha trazido mais de um vestido. A Olma, tinha e me emprestou. Tudo terminou bem mas não sei se tive coragem de dizer para minha mãe que todo seu trabalho tinha sido em vão.
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MEU PAI
Meu pai era nordestino, nascido na divisa de Pernambuco com o Ceará, no pé da Chapada do Araripe. Era conhecido como Mané cearense. Mais um que veio tentar a vida no Sul e nunca mais voltou. Ao deixar o nordeste, não pensava em vir para Minas. Foi para São Paulo, no final da década de 20, época de crise geral. O pouco dinheiro que levara deve ter-se acabado antes de conseguir trabalho, tanto que escreveu para casa dizendo que estava de volta. No caminho de regresso, certamente amargando o sonho desfeito, quando o vapor passava pela Bahia, cruzou com outro que vinha em sentido contrário e onde meu pai encontrou vários amigos e conhecidos. Disseram-lhe que vinham para Minas, onde o governo estava construíndo uma grande prisão e havia muito trabalho. Convenceram-no a voltar. Meu pai escreveu para casa, contando da mudança de planos e voltou com eles.

Em Minas, trabalhando na construção da Penitenciária de Ribeirão das Neves, conheceu uma mineirinha de quinze anos, filha de pobres colonos que labutavam naquelas terras. Casaram-se, tiveram quatorze filhos. Só que, devido á pobreza, à falta de uma alimentação adequada, à falta de assistência médica, oito morreram. Os cinco primeiros, inclusive um casal de gêmeos, morreram ainda bebês. Tanto que eu, sendo a sexta filha, fiquei sendo a mais velha. Viviamos, como se diz, “da mão para a boca”.

Todo sábado, fazia-se a compra da semana e pagava-se a da semana anterior. Numa havia dinheiro para nada que não fosse absolutamente essencial. Eu e minhas irmãs tínhamos um vestidinho de chita e uma sandalhinha barata, que chamávamos de “precata”, comprada na feira, reservados para ir à igreja, à escola, ou para fazer alguma visita. O dia-a- dia era de pé no chão e com vestidos de saco de açúcar ou farinha de trigo, que mamãe tingia de azul, sempre de azul e costurava em sua maquininha de mão. Com bom humor, nos dizíamos que era vestido azuré. Só não tingia o tecido para as camisas de meu pai e para seus aventais, imaculadamente brancos.

Vivendo assim, com tanta dificuldade, meu pai nunca voltou ao Nordeste. Não havia como parar de trabalhar e enfrentar uma viagem de volta às origens. Mesmo porque, nordestino não gosta de voltar sem poder mostrar que venceu. Ele nem tocava no assunto e desconversava quando alguém lhe perguntava algo. A tristeza e a saudade da família, sobretudo das irmãs, das quais, soube muito depois, era o xodó, ele só as expressava em doídas modinhas que cantava para nós e, possivelmente, lendo as histórias da literatura de cordel, originárias de sua terra.

A SOLIDARIEDADE DOS EXCLUIDOS
Ele é uma das poucas crianças que povoaram minha tenra infância, de cujo nome me lembro: Mário. Morava com sua família, umas cinco casas abaixo da nossa, na rua Perdigão Malheiros, na antiga Colônia Afonso Pena. Casa própria (a nossa era um barracão alugado), grande, bem acabada, móveis bonitos, um luxo para os meus padrões da época. Sei que tinha a minha idade que eu e era um menino triste. Não brincava com os outros, quase não falava. Ele tinha um defeito físico, um de seus pés era torto, virado para dentro, o que o levava a andar mancando. Sua família era amiga da minha e nos visitávamos frequentemente.
Ele deve ter mudado do bairro antes de completar sete anos, pois não me lembro dele na escola. Mas coincidiu de estudarmos juntos quando me mudei para o Taquaril e fui estudar no Grupo José Anchieta. Foi lá, quando já estávamos na quarta série, o ultimo ano de estudo, que percebi o quando ele sofria com a própria deformidade, o quanto era triste, o quanto vivia isolado, o quanto era discriminado. E foi ele quem me deu, talvez pela primeira vez, a consciência de que eu era como ele, embora meus pés fossem perfeitos. Meu aleijão era outro: a pobreza, o fato de morar tão longe, de me trajar tão pobremente, de ter o material escolar mais pobre, de não poder convidar os amigos para ir à minha casa, fazia com que a grande maioria de meus colegas me isolassem, me tratassem com um certo desprezo. E, também pela primeira vez, percebi que poderíamos ser amigos, que podíamos oferecer carinho um para o outro, amenizando a respectiva solidão A partir desta constatação, passei a conversar mais com ele, a lhe fazer companhia na volta da escola, a lhe dar mais atenção. Ele retribuiu a cada gesto de carinho e atenção de minha parte. Pena não termos mudado de atitude antes, porque o curso chegou ao fim, minha família mudou de bairro e eu o perdi de vista. Tomara que seja feliz, esteja onde estiver.

"A FRUTA É POUCA, O MACACO É MUITO”
Era assim que minha mãe dizia, quando percebia que o que tinha para repartir entre nós era muito pouco, não ia dar para matar a nossa muita vontade. Era sempre assim, cresci com carência de coisas boas, principalmente de comida gostosa. Em nossa casa, graças ao esforço de meus pais, nunca faltou o básico, o arroz com feijão. Mas aquilo que nós chamávamos de “mistura”, o complemento, era sempre um pouquinho só para cada um, “pouca fruta pra muito macaco”. Me lembro que no Taquaril papai costumava comprar um saco de batata doce e a gente comia arroz, feijão e batata doce cozida quase o mês inteiro. Às vezes variava-se com uma abóbora colhida no quintal, uma couve refogadinha, ou molho de cebolinha com ovo cozido. Este último não consigo fazê-lo sem me lembrar de mamãe. Ela cozinhava um ou mais ovos às vezes só tinha um), cortava em rodelas num prato com bastante cebolinha verde picadinha, umas gotinhas de pimenta. Por cima de tudo, caldo de feijão grossinho e fumegante. Tão simples e tão delicioso, ela servia acompanhando o arroz quentinho. Uma vez por mês papai costumava comprar uns dois quilos de carne de segunda. Mamãe fritava um pouco para a gente e salgava o restante pondo a secar ao sol, visto que não tínhamos geladeira. E a gente ia comendo um pouquinho a cada dia, até acabar.

Como a gente sempre morava longe, papai costumava manter uma ou duas éguas para ajudar a transportar as coisas mais pesadas. Lembro-me que, no Taquaril ele pagava a compra de armazém feita na semana anterior e fazia a compra da semana seguinte, tudo muito controlado, para durar só uma semana, pois o dinheiro era muito pouco.

Nas tardes de sábado lá pelas 3 horas. Depois ela pegava a égua, arreava e eu ia puxando o animal até a venda do Cícero, que ficava perto do Cemitério da Saudade, a uns quatro quilômetros de distância, sendo uns dois quilômetros por uma região completamente despovoada. Eu, com 10 a 11 anos de idade, levava junto Cleusa e Dalva, com 5 e 6 anos, respectivamente. Papai saia do serviço e nos encontrava lá. Às vezes ele comprava para nós uns retalhos de gelatina, outras vezes algumas balas e só. Voltávamos para casa todos caminhando, a égua carregando os dois sacos com as compras, distribuídos um de cada lado do arreio.

Lembro-me que, por mais de uma vez, não havia nada para se comer antes de sairmos para esta viagem. Mamãe cozinhava o feijão, passava-o ainda quente dentro da lata onde se guardava a banha para aproveitar os resíduos, colocava sal e nós comíamos aquele feijão puro com a melhor boca do mundo.

Doce era coisa rara. Lá uma vez ou outra, uma lata de marmelada ou goiabada, que era comida de uma vez. Nem se podia fazer doce em casa pois o açúcar era a conta das demais necessidades da família. Doce de leite com queijo era mais raro ainda. Por isto virou folclore na família, a forma com que a vizinha dos fundos chamava a filha que brincava com minhas irmãs: “Letícia, vem comer doce com queijo!’ Hoje a gente acha graça, mas naquele tempo bem que a gente queria ser filha dos pais da Letícia e não dos nossos. Pelo menos naquele momento.

SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO
Meus pais não eram de frequentar igreja com regularidade. Mesmo porque a igreja normalmente era muito longe de nossa casa. Mas eles tinham aquela religiosidade do povo simples, a respeitosa devoção dos mais humildes, sobretudo a datas marcantes tais como a Sexta-feira da Paixão. .

Para eles Sexta Feira da Paixão era um dia como nenhum outro. Dia de se guardar um profundo respeito. Não se podia conversar alto, cantar, gritar, varrer a casa, lavar roupa, buscar lenha, pentear o cabelo, usar faca ou qualquer ou qualquer ferramenta. No entanto, como acreditava-se ser o dia perfeito para plantar alho o terreno era preparado de véspera. Nada de usar pá, enxada, etc., no dia sagrado. Pela manhã era só colocar cada dente de alho no canteiro adredemente preparado, cobrir com terra usando a própria mão e molhar. Daí a seis meses, maravilhosa colheita.

Para meus pais, o principal da Sexta Feira da Paixão é que era dia de jejum e abstinência de carne. Mas, como costuma acontecer com as pessoas mais simples, ao invés de ser “dia em que não se deve comer carne”, passou a ser interpretado como “dia em que se é obrigado a comer bacalhau”. Mesmo se a situação financeira estivesse péssima, sacrificava-se os últimos trocados, comprava na “caderneta”, para que não faltasse o bacalhau á mesa. Não sei o que mais era interpretado de forma equivocada, só sei que com o bacalhau vinha a macarronada, o queijo, a laranja como sobremesa. Conclusão: Sexta Feira da Paixão, além de ser o dia em que quase não trabalhávamos, era também o dia em que comíamos regiamente, como em nenhum outro do ano. O próprio Natal, nem de longe rivalizava com a Paixão, era tratado como um dia qualquer. Razão pela qual, ao invés de considerar a Sexta Feira da Paixão como dia de tristeza, pela morte de Jesus Cristo, passei a considerá-la dia de festa, o dia da melhor comida do ano. Mamãe punha o bacalhau de molho na véspera, deixando tudo organizado de modo que, no dia santificado, o trabalho fosse só o indispensável. O bacalhau era cozido junto com o arroz na grande panela de barro. Quando já estavam quase prontos, pedaços de queijo eram colocados dentro da panela e quando íamos comê-los estavam derretendo. Forrava-se a mesa com o único forro de mesa que havia e que, fora daquele dia era reservado para servir às visitas. Louça não havia, eram pratos esmaltados, já descascados, garfos de metal barato que tinham que ser ariados todo dia, pois enferrujavam sempre. Sobre a mesa, a panela de barro fumegante, a macarronada, mais queijo, desta vez fatiado, a laranja para a sobremesa. Era um ritual, tirado de não sei onde, pois nem as comidas podiam variar. Sentávamos à mesa, meus pais faziam uma breve oração e estávamos livres para nos empanturrarmos de comida.

Para quem me lê, para quem não viveu tal experiência, esta comilança pode parecer bem modesta. Mas para mim e minha família, que nos demais dias do ano só tínhamos arroz com feijão, uma verdura e, raramente, um pedacinho de carne era banquete mesmo. O dia terminava com um mexidão com as sobras do almoço. Ir à Igreja, nem pensar, era longe demais. Rezávamos em casa mesmo.

PASSOS DE MENINA
Voltávamos para casa depois de uma reunião, alegres senhoras de meia idade, quando minha amiga Jovina falou:
- Espera que nós também vamos, pra que tanta pressa? Com este seu passinho de japonesa, como se andasse com as pernas amarradas, você acaba deixando todas nós para trás.

Obviamente ela se dirigia a mim. Não era a primeira vez que alguém reparava que eu sempre caminhava com passinhos pequeninos, passinhos de criança, mas velozes, rapidíssimos, a ponto de deixar para traz os companheiros de caminhada. Eu que nunca tinha parado para refletir qual o motivo que me levava a andar diferente dos outros, fui para casa pensando e, de repente, descobri o porque.

Tudo começou por volta dos meus nove anos de idade. Na época minha família morava no Taquaril, um bairro novo, de gente muito pobre, quase despovoado, distante de tudo.

Fazia o curso primário (era assim que se chamava naquela época) pela manhã, numa escola distante seis quilômetros de minha moradia (a distancia exata só vim a saber quase quarenta anos depois, percorrendo-a de carro). Deste percurso, que tinha que ser feito a pé, pois não havia ônibus que o servisse (e mesmo que houvesse faltaria dinheiro para pagá-lo), um terço aproximadamente era feito em uma região deserta, quase ou totalmente sem moradores, caminho considerado perigoso já naquela época, para uma criança transitar tão cedo.

Como as aulas começavam às 7:15, eu poderia sair de casa ali pelas 6:00. Mas a esta hora ainda estava escuro para eu ir sozinha. A solução era eu ir em companhia de meu pai, só que aí tinha que sair bem mais cedo.

Meu pai, que trabalhava como pedreiro, tinha que andar mais de dois quilômetros até o ponto do ônibus, tomar mais um ônibus para chegar ao trabalho antes das sete da manhã. Para não perder hora, creio que deveria sair de casa lá pelas quatro e meia. Mas ele e mamãe tinham pena de me tirar da cama tão cedo, razão pela qual ele saia sempre às 5:15, horário que só lhe permitiria não perder os ônibus se ele andasse muito depressa. Eu acordava estremunhada de sono, lavava o rosto, comia um pouco da comida que mamãe fizera para por na marmita dele, vestia o uniforme de fustão branco pregueado, mamãe colocava em minha cabeça o laço de organdi também branco, também engomado com ferro de brasa. Pegava minha pasta de couro surrada e lá íamos nós pela estrada de chão, às vezes amassando barro, às vezes tiritando de frio (não me lembro nunca de ter uma blusa de frio eficiente, só paletó de flanela), ele andando bem depressa e eu procurando acompanhá-lo, e para isto andando ainda mais depressa que ele, pois minhas pernas eram curtinhas. Íamos juntos até o ponto do ônibus, lá ele me dava uma moeda para a merenda e eu continuava sozinha até à escola. As pernas encompridaram (não muito, é verdade), virei adulta, e hoje ando depressa, mesmo quando não é necessário, fiquei viciada. Virei adulta, mas ainda ando com passos de menina, menina correndo atrás do pai. (Continua na parte II)

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